Sou uma pessoa que convive com algumas questões irresolutas. A bem da verdade, são medos; daqueles que nos consomem muito tempo de estratégias para lhes sobreviver. E, reparem, não falo da epidemia receosa do seculo 21: medo de compromisso. E nem da fantasia infantil: medo do escuro. Sequer falo do medo feminino de alguns seres vivos rastejantes. Para essas situações, podemos pôr em prática pequenos truques que não alteram em nada o decorrer normal do dia. No meu caso, refiro-me a um verdadeiro “problema de autoridade”. Passo a explicar. Sempre que me cruzo com a empregada de manhã, e enquanto engulo o café, elaboro, rapidamente, uma desculpa razoável para a quantidade de pratos sujos no lava-loiça. E quando digo razoável, estou a ser optimista, porque a minha necessidade de justificar é tanta que me dou conta de dizer coisas como: quem diria que, ontem à noite, iam bater à porta uns amigos de amigos que estavam de passagem por cá e, há coisas..., não é que o carro avariou e não havia forma de pegar? Por sorte conseguiram o meu número, e lá fui ajudá-los... enfim, é muito aborrecido uma coisa destas... acabei por convidá-los a vir aqui comer alguma coisa, estiveram imenso tempo à espera do reboque. Tudo mentira. Pura e simplesmente, no dia anterior, sujei sozinha mais loiça do que o habitual.
Mas porque motivo me sinto obrigada a dar explicações?! Podia ter o serviço de jantar completo espalhado pelo chão, com sobras de uma refeição de há 3 dias e, ainda assim, não havia razão para me desculpar. Esse é o trabalho da senhora, é para isso que lhe pago. E ela não se queixa, não mesmo. Sou eu! A culpa é toda minha! Vá-se lá saber porquê, sinto esta necessidade. Quando me apercebo, já estou lançada em mais uma fábula quotidiana. A mesma coisa ocorre quando há cinzas em cima da mesa: homens são mesmo... ai ai... um amigo recebeu uma proposta de trabalho fora do país, anda indeciso, e apareceu aqui para conversar. Eu até já estava deitada, mas que havia de fazer? Anda hesitante, não sabe... farta-se de fumar e ficou isso cheio de cinza. Nem reparei que a mesa tinha ficado assim.
Acontece, também, quando levo o carro ao mecânico. Todos os riscos e mossas, contam uma fatalidade. E no parque onde costumo estacionar? Há um, apenas um segurança, que me faz rondar o estacionamento por tempo indeterminado, até ter a certeza de que posso tirar ou pôr o meu carro sem que ele esteja por perto. Sinto-lhe o olhar reprovador a queimar na minha pintura “negro metalizado” de cada vez que dou mais uma volta ao volante.
Dá-se de modo idêntico no supermercado, quando a senhora do caixa me diz: “-Tem a certeza que não vai aproveitar a promoção?” Pois... realmente, mas... esta fila toda, e depois voltava para o final... “-Mas olhe que a promoção vale a pena...” Pois, pois vale, mas estou com tanta pressa, e agora que já chegou a minha vez de pagar, não me dá muito jeito voltar ao fim da fila. “-A senhora é que sabe... eu nem podia dizer-lhe isto... mas, se for buscar mais uma para lhe darmos a 3ª e quiser trazer ainda outras duas, eu fecho os olhos e leva 2 de oferta”. E eu, eu que estou atrasadíssima, eu que preciso é de poupar precioso tempo, devia limitar-me a responder: "agradeço muito, pena estar realmente com pressa." - mas, porque padeço deste “problema”, resolvo dizer: Ah, muito obrigada! Então vou lá sim. E, logo a seguir, começo a pensar: vou e depois ocupo o último lugar desta fila quilométrica. Porque, sabe, o seu caixa é o que tem a maior quantidade de pessoas, imagino que o motivo seja chamar-se “caixa expresso até 15 unidades”, isto é, existe para quem, expressamente, não pode perder tempo, e selecciona 15 intens indispensáveis da lista, porque tem de se despachar! Mas eu, eu não, eu, apesar de ser uma destas pessoas, vou buscar a sei lá que prateleira, não sei quantas embalagens de não sei o quê, por causa de uma promoção, a qual nem percebi bem, porque estou a fazer as compras a correr, no intervalo destinado ao almoço.
E pronto, é isto, convivo assim com este “problema de autoridade”. Mas não com toda a gente; só me acontece quando a outra parte tem, pelo menos, mais 20 anos que eu. Portanto, posso afirmar tratar-se, no fundo, de um “problema de autoridade” com pessoas mais velhas, o que, para muitos psicólogos, espelharia traumas de infância com os progenitores. Asseguro, eu era uma criança feliz; nunca fui espancada, não fui submetida a trabalhos forçados, os meus pais não são divorciados e, por isso, não vivi com madrastas ou padrastos déspotas. No colégio era boa aluna, até com certa tendência a liderar, e nunca fui escravizada pelos “grandes” no recreio. No entanto, neste tipo de situações, sinto-me com 6 anos, de uniforme escolar e pernas trémulas, em cima do estrado da sala, sob o olhar inquisitivo da Irmã Adélia que me atirava a tabuada salteada e aguardava respostas certeiras.
Bem, aos poucos fui aprendendo a contornar estes imprevistos e desenvolvi técnicas eficazes para conseguir encaixá-los na minha rotina. Baseio-me, essencialmente, na “arte da fuga”. Calma, não desato a correr pelo supermercado, pela cozinha de casa, ou pela oficina de automóveis, qual maratonista, porque, apesar de nesses momentos me sentir com idade escolar, tenho..., bem, tenho alguns anos mais, sou uma pessoa adulta, e não me parece muito adequado debandar de estabelecimentos públicos a considerável velocidade. Se já o considerei? Sim, sim. Há até a possibilidade de um ou outro comportamento próximo - igualmente embaraçoso, no mínimo; em consequência, tive de alargar o meu raio comercial um quarteirão e, mais tarde, acrescentei outros bons metros, e... se assim continuasse, rapidamente precisaria de um dia de folga para comprar arroz, ou, sei lá, um fim de semana para a a lista de compras completa. É por isso que chamo às minhas fugas uma arte. Correr é erro de iniciante nestas andanças; com o tempo percebi que, com paciência e empenho, podemos escapar de forma mais sublime. Habitualmente, uso o telemóvel. Faço ou recebo intermináveis e importantíssimas chamadas – atenção aqui, este truque necessita do telefone em silêncio! Não é nada conveniente tocar enquanto encenamos tão premente conversa. Outras vezes, pego na agenda e empunho a caneta, tal qual uma espada que mantém o inimigo afastado, e então escrevinho o que me vem à cabeça; faço bonequinhos com os cabelos em pé, florzinhas, estrelinhas, assino 10 vezes o meu nome completo... mas sempre, sempre, com uma expressão facial de compenetração do tipo, “génio em processo de criação, não ousem perturbar, termino agora a fórmula da vida eterna”- outra vez, atenção aqui. Colocar o papel num ângulo de aproximadamente 45 graus com o tronco, para não haver possibilidade de espreitarem o nosso segredo. E, assim, deste modo, vou sobrevivendo ao meu pequeno drama pessoal.
Há uns tempos, abriu na minha rua um quiosque. Exultei de felicidade. O jornal, revistas, pastilhas elásticas, cigarros, canetas coloridas, cartõezinhos de parabéns que nunca enviamos, bloquinhos que não servem para nada, tudo aqui, a escassos metros do meu sofá! Mais, aberto ao domingo até às 15horas! No momento em que o vi, esta rua tornou-se o paraíso! O lugar perfeito para se viver. A minha casa pode, alguma vezes, estar longe da decoração quimérica, mas a rua, a rua tem tudo que eu pediria ao génio da lâmpada!
Há umas semanas, ia a entrar no quiosque de sonho, quando reparei num senhor de meia idade na porta, com um ar distinto, muito distinto, que me lançou um olhar estranho. Entrei e, enquanto escolhia revistas, notei que o tal senhor me perscrutava com o olhar. Senti um ligeiro embaraço, mas nada grave. Pensei imediatamente em valer-me do truque “chamada crucial”, mas... remexi a bolsa durante longos minutos, remexi de novo, enfiei a cabeça lá dentro e... nada de telemóvel... tinha ficado em casa. Dirigi-me depressa ao balcão, paguei e vim para casa.
Alguns dias depois, regressei a esse bocadinho de céu da minha rua e, novamente, o velho insigne na porta. Entrei, escolhi as revistas rapidamente, nada do Senhor-distinto, tudo perfeito. Eis senão quando, encaminhava-me para pagar, e... ele estava lá! No lugar da Senhora-simpática de sempre, estava o Senhor-distinto. Fiquei muitíssimo atrapalhada porque, enquanto esperava, ele demorava-se a digitar os preços na máquina, e lançava-me olhares que, juro, não eram lascivos, eram só olhares, palavra de honra, o suficiente para me fazer sentir no estrado do colégio, a ser inquirida da tabuada salteada. Pegava numa revista, olhava-me, premia os botões devagar; depois pegava noutra revista e fazia o mesmo ritual. Eu senti-me tão avaliada que tive vontade de dizer: "Senhor -de- meia- idade-e -aspecto- distinto, eu sou culta como o Senhor parece ser! Juro! Repare, compro o jornal! E levo a Time, adoro ler a Time! Pergunte à Senhora-simpática que costuma estar aqui. A Time e a Visão, sempre! Vê, sou culta!" No lugar disso, visto que tinha saído de casa só para ir ao quiosque e sabia não ter telemóvel nem agenda, peguei na primeira coisa que vi, uns cromos da “Hello Kitty” que estavam em cima do balcão. Li, atentatentamente, todo o explicativo acerca da colecção da “gatinha mais famosa” na parte de trás da embalagem. Quando reparei, o Senhor-distinto já tinha a conta pronta e observava-me, mas, desta vez, com olhar de: ”vai levar também isso?” Então, disparei: ”Levo estes cromos também”. Ele juntou ao total e lá vim eu para casa, na companhia do raio da gata.
Dois dias depois, passou-se exactamente o mesmo, embora estivesse também no balcão, a Senhora-simpática de sempre, o que me levou a ficar ainda mais atrapalhada pela possibilidade dela perceber que o Senhor-distinto me intimidava. Pronto, peguei outra vez nos cromos da “Hello Kitty”, li tudo o que estava na parte posterior da embalagem e, quando percebi que os cliques da máquina tinham parado, disse: “Sim, sim, vou levar os cromos também”.
A partir desse dia, perdi qualquer controle... Apesar do Senhor-distinto ter desaparecido, a Senhora-simpática passou a dizer: “E os cromozinhos, vai levar?”
Eu juro, nunca mais peguei neles, só o fiz enquanto o “Distinto” lá esteve, mas, naquele dia, ela viu-mos comprar, e ela é a Senhora-simpática, tão simpática que, da primeira vez que lá voltei - após presenciar o episódio cromos com o “Distinto” – visto não ter feito menção de lhes pegar, ela disse: “Vai levar os cromozinhos? Há um cliente, vem sempre cá comprar para a filha, que, imagine, tem mais de 40 anos! Parece que ela sempre gostou muito da “Kitty”. Por isso, não se preocupe, a senhora é bem mais nova, e olhe, cada um gosta do que gosta.” Perante isto, o que havia de fazer? “Pois, na verdade, nem são para mim, são para a minha sobrinha, que tem 5 anos e adora “a Kitty”. Céus! Eu não tenho sobrinhos! Inventei um familiar! Isto está a ganhar proporções compulsivas!
E, agora, sempre que lá vou, a Senhora-simpática diz: "Vai levar os cromozinhos para a sobrinha, não é?" E eu, que não tenho limites, apresso-me a responder: "Sim, sim, vou, claro! Tem que ser! O que ela gosta da “Kitty”!"
Hope