quarta-feira, 18 de novembro de 2009

#Neolatinos

Vivi durante um tempo no Brasil. Nessa altura tive noção do quanto somos estrangeiros, mesmo que em território irmão. Embora se possa pensar  que os maiores obstáculos enfrentados tenham sido  saudades, solidão, receios ou, tão somente, pele escaldada a cair em placas, dificuldade para sambar, caipirinha gelada e..., desvelo dos nacionais masculinos  (muito solícitos para interacção, sem dúvida!), devo desenganar, porque o maior entrave na ex-colónia foi, sem dúvida, a língua - refiro-me à linguagem, não se relacione isto com o último ítem que mencionei, por favor.
Estava hoje a arrumar alguns papéis e, entre cartões, talões, recados, bilhetes e recordações, encontrei um quadradinho amarelo escrito na minha letra. Li-o. Contava parte de um  dos meus dias, naqueles primeiros meses em que a localização geográfica me obrigava a viver o abismo de um oceano. Confesso, sinto uma certa nostalgia desse tempo, quando a corrente linguística me tornava náufraga de turbulentas águas internacionais:
Eu: Boa tarde. Por favor, eu queria alterar a minha morada de residência (sorriso simpático)
Senhor dos serviços: A residência da namorada? Ah, tem que ser ela mesmo. Ou você tem que arrumar autorização assinada. É informação confidencial.
Eu: Não, não!  A minha morada! Alterar a que está aí.
Senhor dos serviços: Mas da namorada de quem? Porque não vem ela mesmo aqui?
Eu: O Senhor não está a perceber... mudei de casa recentemente e queria que ficasse no meu registo o sítio onde vivo agora. (2º sorriso simpático/genuíno)
Senhor dos serviços: Ah, você vive num sítio? Que bacanais! Aqui mesmo no Rio?
Eu: Não, não... vivo num apartamento. (1º sorriso simpático/forçado)
Senhor dos serviços: Então quem mudou "prô" sítio? A namorada?
Eu: (sem sorriso simpático, sem sequer tentar forçá-lo)... Por favor, oiça-me com atenção: eu morava num apartamento que fica numa rua. Foi essa a rua que eu escrevi aí no meu registo. Agora eu mudei para outro apartamento, que fica noutra rua. Eu quero é que o Senhor tire da MINHA ficha "Rua Visconde de Pirajá" e ponha "Rua Gomes Carneiro".
Senhor dos serviços: Ahhhhhhhhh, "tendi", você quer mudar seu endereço! "Tá" bom.
Eu: Isso! É isso mesmo! (expressão igual à de Álvares Cabral quando descobriu o Brasil - igualmente penoso)
Senhor dos serviços: Você fala de um jeito engraçado portuguesa! Muito hilário mesmo! Ah Ah Ah
Eu: Pensava falar português... (2º sorriso simpático/forçado)
Senhor dos serviços: Eh... não é bem português, vocês falam um pouquinho diferente. 'Cês' dão uma 'puxadinha' nas palavras.
Eu: Eh, e se vocês 'puxassem' pela cabeça, percebiam que sou eu quem fala português..., porque, imagine-se lá, sou portuguesa! Descendente dos chamados "colonizadores", aqueles que trouxeram o vocabulário para este lado do Atlântico.
Na verdade, esta última deixa foi aquilo que pensei, mas achei por bem não verbalizar. Preferi  ser uma "portuga bacana", ficar pelo " Sim sim, lá é mais frio e comemos bacalhau. Obrigada! Boa tarde!" e, então, forçar um terceiro sorriso.

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