segunda-feira, 23 de novembro de 2009

#Noite Pontuada

Já ouvi várias histórias acerca de noites promissoras que acabam mal, ou que terminam antes mesmo de iniciarem. Normalmente, a culpa é toda do álcool, que não só toldou a capacidade de discernimento, como vendou qualquer reflexo motor... no limite, cobriu com o manto da semi-inconsciência, o qual só será levantado na manhã seguinte, pelo despontar de uma pungente dor de cabeça.
Presenciei muitas situações, em que noites de fim-de-semana, que se tornaram fatídicas para relações amorosas, para relações de amizade, para relacionamentos paternais e profissinais... uma verdadeira ralação.
Mas, quando está em causa a minha esfera de actuação, a palavra desventura ganha nova dimensão, porque se falamos de tragédia, levante-se o pano e faça-se merecida ovação, já que esse é o meu melhor personagem.
E, para que ninguém duvide de como sou boa em desgraças, conto o que aconteceu numa noite em que tudo que desejava era sair e divertir-me com amigos. Nada de excessos, nada de grandes expectativas, nada de festas lotadas. Passar um bom bocado. Só isto.

Numa sexta-feira ao final da tarde, encontrava-me em casa num estado semi-dormente quando a minha irmã me ligou e me convenceu a sair. Não precisaria ausentar-me até chegar a hora combinada, tinha por isso muito tempo para os preparativos e, portanto tudo muito bem, tudo certo e a correr de feição. E, por isso mesmo, pelo “tudo tranquilo”, eu deveria ter achado estranho. Às vezes parece que não me conheço... que imprudência a minha! Agora que penso... como é que pude fiar-me na possibilidade de acabar uma semana (anormalmente) sem fatalidades, assim, de uma maneira comum, a beber um copo com amigos
Estava ainda recostada no sofá, possivelmente a ver algum filme de baixo orçamento – tenho uma quedazinha para tudo que é lixo televisivo - quando olhei para o relógio e reparei que se fazia tarde; resolvi, então, preparar um jantar rápido. Dirigi-me à dispensa, passei os olhos pelas latas alinhadas mediante número de calorias - eu arrumo os produtos alimentares por ordem crescente do valor energético; ou seja, quando estou deprimida vou directamente às últimas filas. Não importa se pego numa embalagem de massa crua ou de bolachas, porque sei que aquilo que se encontra no final das filas ordenadas, terá que ser, necessarimente, hipercalório e, portanto, o desejável em situações de baixa seretonina.
Peguei numa das latas  e comecei a fazer o arroz. Entretanto, fui escolher a roupa, tomei banho e, ainda de roupão vestido, coloquei o meu individual na mesa da cozinha. Estava tudo a desenrolar-se numa incomum normalidade. Tive até o cuidado de esperar vestir-me após jantar, porque, de outro modo, acabaria com uma almôndega de soja aconchegada no colo ou no decote. É sempre assim.
Mas, quando estava a abrir a lata, o destino tratou de não perder a ocasião 
 com o dia a terminar podia não surgir outra oportunidade que resultasse de modo tão catastrófico – e, então, a mão escorregou-me um centímetro e a lata saltou. Quando percebi, jorrava continuamente algo parecido com o molho de tomate das almôndegas.
Confesso que já quase nem me incomodo com estas surpresas. No fundo pressentia que naquela sexta tranquila aconteceria alguma coisa, mas, convenhamos, longe de imaginar que o meu dia acabaria com um episódio de urgência.
Enquanto mantinha a mão debaixo de água corrente senti um frémito de revolta e pensei: “Alto lá! Atenção! Isto não é assim! Não se chega aqui, arruina-se não só a minha noite como, possivelmente, todo o meu fim-de-semana por causa de um jantar pré-pronto. É que não falamos de me magoar enquanto fatiava uma trufa italiana, não!, este meu desastre era totalmente desprovido de qualquer elegância e sofisticação.
Surgiu-me, então, a ideia de ligar a um amigo que usou muitos fins-de-semana para estudar e é, portanto, médico. Estava decidida a contrariar o meu fado, pelo menos em parte. Mas, repare-se até que ponto a vida de alguém destinado a peculiaridades pouco agradáveis pode ser cruelmente curiosa. O meu amigo, que raramente se permite a mais de 24horas longe do hospital, tinha, naquela fatídica sexta-feira, resolvido viajar até casa dos pais, fora da cidade, com intenção de passar o fim-de-semana.
Mas, eu não ia desistir. Normalmente, aceito resignada este tipo de penas quotidianas mas, desta vez, estava determinada a, no mínimo, não ir parar às urgências. E como sou uma mulher decidida, acho muito injusto que a entidade responsável pelos meus acontecimentos rotineiros me faça passar por constantes provações. Que me tenha arruinado a noite, muito bem, até acho razoável, não fosse eu habituar-me a dias normais. Que um certo instinto sádico tenha levado a alargar o meu infortúnio para sábado e domingo, aceito, porque não gosto de meios termos - se é para ser desafortunada, então que o seja de forma majestosa – mas terminar no atendimento do hospital, isso não ia permitir!
Determinada, enrolei a mão numa toalha, tirei o carro da garagem e conduzi durante 100 quilómetros, qual guerreio ferido empenhado em lutar até à morte.
Visto que não furei um pneu no caminho, não fiquei sem combustível e nem me esvaí em sangue, sequer desmaiei ao vê-lo, a coisa tinha que se complicar de outra maneira.
Todos temos 5 dedos na mão. Eu tenho também (a mãe natureza foi muito agradável, não me subtraiu nenhum membro)
 mas, no campo das improbabilidades, dos 5 dedos da mão podia ter esventrado qualquer um. Mas, falamos de mim. Falamos, portanto, da personificação do azar e, como tal, a mazela localizava-se no único dos 5 dedos onde podia ser mais incómoda – o polegar oponível. Sim, aquele dedo cujo movimento nos distingue dos primatas e, por isso mesmo, pela sua posição oposta aos outros, seria o menos provável de ferir quando se agarra numa lata. O dedinho, cuja complexa movimentação, nos faz sentir seres vivos tão evoluídos e aperfeiçoados e que, visto ser o meu, exigia pontos a sério, daqueles com linha e agulha.

“- Não percebo porque te vais submeter a isto sem anestesia... vou contigo ao hospital, anda lá, é num instante!”
- Aqui! Com uma agulha de tricôt se for preciso!
- Está bem. Vou buscar também um vinho, para depois brindarmos à tua coragem.”

Devo dizer  que foi realmente doloroso e que eu fui  inesperadamente corajosa, porque não me permiti a um único queixume - talvez possa atribuir alguma parte desse mérito ao vinho. Foram 5 dolorosos pontos, um por cada dedo que podia ter magoado, se não tivesse ficado tudo para o polegarzinho...
No entanto, importa realçar que valeu a pena contrariar o destino - não pretendo fazê-lo muitas mais vezes porque ele pode aborrecer-se com esta novidade de eu querer controlar a minha vida. Mas, terminei o dia com o plano inicial, a beber um copo em boa companhia. E mais! Como fui previdente e estava de roupão aquando a tragédia, mantive a roupa imaculada, como se pronta para uma festa.
No fundo, foi bastante simpático este desfecho. Obrigada destino! Só não escrevi um cartão de agradecimento porque, azar dos azares, a mão lesionada foi a direita!

  (imagem "furtada" em  http://brainestruming.blogspot.com/)

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